domingo, 18 de junho de 2017

Jair e o IRPA da Bélgica

  

O Instituto Real do Patrimônio Artístico
  de Bruxelas e Barroco Mineiro
     Er i k a B e n a t i Rabelo e Myriam Serck-Delwaide
O Instituto Real do Patrimônio Artístico de Bruxelas (IRPA),
antigo ACL (Archives Centrales Iconographiques d’Art et le
Laboratoire Central), surgiu oficialmente em 1948, ano em que
tornou-se independente em nível administrativo do Museu Real
de Arte e História de Bruxelas. Entretanto, remontando no tempo,
as atividades do IRPA se iniciaram em 1934, com a chegada de
Paul Coremans (1908-1965) para os departamentos de documentação
e do laboratório de pesquisas físico-químicas do Museu Real.
Doutor em química, Paul Coremans implementou projetos de
restauração envolvendo os principais museus belgas. Desejando
que seus departamentos crescessem cientificamente, direcionou
a conservação de obras de arte segundo uma metodologia científica,
baseada no estudo exaustivo de seus materiais constitutivos.
Preocupado com a comunicação, criou uma rede de relações com
universidades da Europa, dos Estados Unidos e demais centros de
conservação. O surgimento do IRPA é contemporâneo de instituições
internacionais pioneiras, tais como o Courtauld Institute,
em Londres (1932), e o Istituto Centrale per il Restauro (ICR),
de Roma, criado por Cesare Brandi em 1939.
Como diretor do IRPA, Coremans conciliou duas áreas distintas,
mas complementares: a documentação e a análise científica.
Deu início a uma vasta campanha de inventário fotográfico do
patrimônio da Bélgica, que, apesar de ser um país pequeno, concentra
     uma riqueza excepcional. Essas campanhas de inventário
aceleraram-se durante o período da Segunda Guerra Mundial.
Estima-se que entre 1941 e 1945 mais de 160 mil fotografias foram
realizadas, e isto levando em conta o racionamento de gasolina,
do material fotográfico em geral e dos constantes bombardeios.
Esse acervo fotográfico foi de grande utilidade uma vez terminada
a guerra, pois serviu para uma avaliação precisa do estado
de conservação do patrimônio móvel e imóvel e para o desenvolvimento
de uma estratégia de recuperação. Algumas dessas fotografias
são, em casos extremos, o único testemunho de objetos
completamente destruídos pela guerra (Masschelein-Kleiner, p.
18). Todo esse material fotográfico é, ainda hoje, uma excelente
base de informação para restauradores e pesquisadores em geral.
Se por um lado a guerra engendrou a deterioração do patrimônio,
por outro, e paradoxalmente, ela promulgou, nos anos seguintes,
o desenvolvimento de teorias relativas à sua recuperação.
Os anos do pós-guerra foram vividos, em nível mundial, como um
período de reflexão, de avaliação e de procura de critérios na área
do patrimônio. Sem dúvida, a experiência desse inventário, realizado
em tempos difíceis, com uma equipe composta de artistas, de
historiadores de arte e fotógrafos, influenciou o desenvolvimento
de uma prática baseada na interdisciplinaridade, pedra angular
do trabalho do IRPA.
No nível nacional, o IRPA apoiou a criação do Centro Nacional
de Pesquisas ‘Primitifs flamands’ (1949), cujos objetivos
eram constituir um inventário, um arquivo fotográfico e o estudo
da produção de pintura do século XV nos antigos países baixos
meridionais (atual território belga). No cenário internacional, o
IRPA participou de momentos históricos, como da criação do
International Council of Museums (ICOM) em 1946, do International
Institute for Conservation of Historic and Artistic Works
(IIC) em 1950, do International Centre for the Study of the Preservation
and Restoration of Cultural Property (ICCROM) em
1959 e ainda e do International Council on Monuments and
Sites (ICOMOS) em 1964.
Em 1957, o projeto de interdisciplinaridade idealizado por Coremans
é oficializado e surge a atual denominação: Institut Royal
du Patrimoine Artistique/Koninklijk Instituut voor het Kunstpatrimonium.
Historiadores de arte, restauradores, químicos, físicos
trabalham juntos para o estudo, o inventário e a conservação
do patrimônio artístico. O projeto do edifício independente com
8.700 m2, separando fisicamente cada área de trabalho, foi lançado
e a pedra fundamental foi posta em 9 de maio de 1959 (Masschelein-
Kleiner, p. 25). Em 1963, a química Liliane Masschelein
-Kleiner integra a equipe do laboratório, dedicando-se às análises
dos materiais orgânicos, até então difíceis de serem identificados
pela microscopia e pela microquímica. Os laboratórios adquiriram,
a partir da década de 60, um equipamento extremamente
moderno para a realização de exames científicos.
Formação e estágio no IRPA
A partir de 1949, o IRPA começou seu programa de estágio em
seus ateliers de restauração. Coremans, extremamente visionário,
via sua instituição como um verdadeiro centro de formação. Enquanto
conselheiro da United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization (Unesco), visitou vários países e observou
que havia urgência em capacitar os recentes centros de conservação
surgidos pelo mundo inteiro com funcionários formados
segundo uma metodologia científica adequada.
Quando o IRPA mudou-se para o novo prédio em outubro de
1962, o estágio tornou-se um curso de pós-graduação em parceria
com universidades belgas (Ceulemans, p. 208), programa que durou
somente três anos, mas que ganhou reputação internacional.
Entre 1960 e 1970, 89 estagiários, entre estrangeiros e belgas, passaram
pelo IRPA. Após o falecimento de Paul Coremans (1965) a
pós-graduação voltou a ser um estágio de aperfeiçoamento, mais
modesto, mas mantendo os objetivos iniciais centrado no estudo
científico das obras de arte.
Estagiários brasileiros
Em 64 anos de existência, o IRPA recebeu 14 estagiários do
Brasil, procedentes dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio
de Janeiro, Pernambuco e Bahia: Jair Afonso Inácio (MG), Fernando
Barreto (PE), Regina Costa Pinto Dias Moreira (BA), Francesca
Karolyi (SP), Liana Gomes Silveira (BA), Claudina Maria Dutra
Moresi (MG), Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira (MG), Luiz
Antônio Cruz Souza (MG), Marcos Cézar de Sena Hill (RJ), Kathia
Berbert Sant’Ana (BA), Beatriz Gonçalves Gaede (MG), Erika
Benatti Rabelo (MG), Erika Santos (RJ), Karen Barbosa (SP).
O primeiro estagiário brasileiro (1961-1962) viveu uma época
importante da história do IRPA, que culminou com a transferência
dos ateliers, dos laboratórios e dos arquivos para o novo prédio,
inaugurado em dezembro de 1962. Jair Inácio não chegou a
trabalhar nos novos locais, pois seu estágio terminou três meses
antes. O percurso profissional de Jair é típico de sua época: sem
formação acadêmica, ele foi admitido no Sphan (orgão que teve
variações de nome e siglas desde sua criação: Dphan, Sphan,
IBPC e atualmente Iphan) devido a seu talento como pintor na
cidade de Ouro Preto (MG) e graças ao mecenato da Fundação
Rockefeller, de Nova York, pôde vir estudar na Europa. Nos arquivos
do IRPA encontram-se cartas de recomendação elogiosas a
Jair da parte de Rodrigo Mello Franco Andrade, primeiro diretor
do Sphan e pioneiro incontestável da recuperação patrimonial
no Brasil, e de Edson Motta, restaurador, funcionário do Sphan
e professor universitário no Rio de Janeiro.
Nessa época, os restauradores eram ainda polivalentes, trabalhavam
objetos diversos. Jair Inácio participou da restauração da
‘Descida da Cruz’, pintura de Rubens conservada na Catedral de
Antuérpia, sob a direção de Georges Messens. Foi contemporâneo
de Agnes Grafin Ballestrem, formada no Landesmuseum, de
Bonn, Alemanha. Agnes tornaria-se responsável pelo atelier de
restauração de escultura do IRPA, em seguida responsável pelo
Paul Coremans, Jair Afonso Inácio e Fernando Barreto em Ouro Preto em 1964.
Landesmuseum e diretora do Central Laboratorium voor Onderzoek
van Voorwerpen van Kunst en Wetenschap, em Amsterdã.
Durante seu estágio, Coremans organizou visitas profissionais
a fim de que Jair Inácio pudesse usufruir ao máximo de sua experiência
europeia. Entre os meses de abril e maio de 1962, o estagiário
visitou o Museé National Suisse de Zurich, os ateliers do
Musée du Louvre sob a direção de Madeleine Hours e o Instituto
para o Exame e Restauro das Obras de Arte de Lisboa. Antes de
retornar ao Brasil visitou a Rockefeller Foundation em Nova York.
Paul Coremans viajou ao Brasil em 1964 como conselheiro da
Unesco. Visitou o Rio de Janeiro e as cidades históricas de Minas
Gerais e Pernambuco. Nessa ocasião conheceu Fernando Barreto,
professor da Universidade de Pernambuco e restaurador de pintura
do, então, Dphan. Fernando viria ao atelier de pintura do IRPA em
1964/1965 com uma bolsa concedida pelo governo belga.
Na década de 70 o quadro muda um pouco e os estagiários brasileiros
que chegam ao IRPA vêm com uma formação universitária
em Belas Artes e aprendizado em ateliers europeus. Ou seja, já há
uma especialização entre as diferentes áreas. Regina Costa Pinto
Dias Moreira, estagiária em 1970/1971 no atelier de pintura, tinha
formação de três anos no Instituto de Conservación y Restauración
de Bienes Culturales de Madri, criado em 1961 sob o incentivo da
Unesco e particularmente de Paul Coremans. Regina tornar-se-ia
referência na França onde durante mais de duas décadas esteve
a cargo de restaurações de obras-primas conservadas no Museu
do Louvre. Recentemente colaborou com restaurações no Masp,
de São Paulo. Francesca Karolyi estagiou no atelier de escultura
policromada em 1971/1973. Em seguida, trabalhou no IRPA e
na Alemanha (Munique). Liana Gomes Silveira era restauradora
do Museu de Arte Sacra de Salvador quando veio estagiar no IRPA
em 1976/1977. Em seu currículo constava um curso na Real
Academia de Bellas Artes de San Fernando, em Madri. Durante
seu estágio no atelier de esculturas policromadas, sob a direção de
Myriam Serck-Dewaide, dedicou-se ao estudo da substituição da
Estagiários do Institut Royal du Patrimoine Artistique, 1961-1962.
reintegração à base de pintura a óleo por resinas sintéticas testadas
em envelhecimento artificial, bem como a prática de remoção
mecânica de repinturas.
No Brasil dos anos 80 surgem cursos de especialização en conservação
e restauração de bens móveis. Em 1980, o Centro de
Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da Universidade
Federal de Minas Gerais (Cecor) e, no mesmo ano, outro
curso de especialização, na Universidade Federal da Bahia. A estagiária
Claudina Maria Dutra Moresi, química do Cecor-UFMG
frequentou o IRPA em 1986/1987, juntamente com seu marido,
Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira (atelier de pintura). Claudina
desenvolveu um trabalho no Cecor-UFMG baseado em sua
experiência na Bélgica. Voltou ao IRPA em 1991 para uma pesquisa
específica. Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira foi professor
da Fundação de Arte de Ouro Preto. Luiz Antônio Cruz Souza,
químico do Cecor-UFMG, esteve no IRPA em 1987/1988 e em
seguida estagiou no Getty Conservation Institute, em Los Angeles,
EUA. Luiz Antônio é atualmente professor do Cecor-UFMG
e representante do Brasil no conselho do Iccrom. Marcos Cézar
de Sena Hill, diplomado do Cecor-UFMG, estagiou no atelier de
escultura policromada em 1987/1988, sob a direção de Myriam
Serck-Dewaide. Diplomou-se pela Universidade de Louvain-La
-Neuve e é professor de História da Arte na Escola de Belas Artes
(EBA-UFMG). Kathia Berbert Sant’Ana foi estagiária do atelier de
pintura do IRPA em 1988/1989, sob direção de Nicole Goetghebeur.
Trabalhou no Museu de Arte Sacra de Salvador, na Bahia,
e no Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac). Beatriz
Gonçalves Gaede estagiou no atelier de escultura policromada em
1990/1991, sob a direção de Myriam Serck-Dewaide. Erika Benati
Rabelo, diplomada pelo Cecor-UFMG, estagiou no atelier de escultura
policromada em 1992/1993. Domiciliou-se na Bélgica e
colabora com o IRPA desde 1997, onde foi responsável por vários
projetos de restauração. Realizou pesquisas e publicações sobre a
escultura barroca na Bélgica. Erika Santos estagiou no atelier de
escultura policramada em 2007/2008. Domiciliou-se na Bélgica
e estudou na Artesis Hogeschool de Antuérpia. E Karen Barbosa,
diplomada pelo Cecor-UFMG, estagiou no atelier de pintura em
2010/2011. Karen atualmente é coordenadora da área de conservação
e restauração do Museu de Arte de São Paulo (Masp).
Considerações finais
O relatório de Paul Coremans de sua missão ao Brasil e à
América Latina como conselheiro da Unesco em 1964 é um documento
interessante. Além de descrever o que viu no Brasil e
sugerir medidas protetoras para os sítios históricos visitados, ele
analisa em profundidade o funcionamento do antigo Dphan. Havia,
nos anos 60, uma dependência do Brasil, nos níveis teórico e
financeiro (bolsas de estudo), em relação aos países onde a estrutura
patrimonial estava mais organizada. A relação belgo-brasileira
desse período inscreve-se nesse âmbito. Observa-se a dependência
internacional para os assuntos patrimoniais do Brasil. O IRPA e a
Unesco forneceram recursos materiais e humanos para a capacitação
dos órgãos nacionais de preservação do patrimônio cultural
no Brasil e na América Latina.
Nas décadas seguintes essa relação continua, mas de outra forma.
Ela caracteriza-se por uma troca de conhecimentos. Vemos a
participação de belgas em cursos e congressos no Cecor-UFMG
e no Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (Ceib), criado
pelas professoras Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, fundadora
do Cecor-UFMG, e Myriam Ribeiro de Oliveira, doutorada
pela Universidade de Louvain-La-Neuve, professora da UFRJ
e pesquisadora do Iphan. Em 1985, acontece o seminário sobre
adesivos naturais, vernizes e utilização de solventes em restauração,
ministrado por Liliane Masschelein-Kleiner, do IRPA, e
coordenado por Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, no Cecor-
UFMG. Em 1989, realiza-se o seminário Taller de actualización
para América Latina: escultura policromada, organizado
pelo Getty, Programme des nations unies pour le développement
(PNUD), Unesco e UFMG, também no Cecor. Participaram deste
seminário o belga Jean-Albert Glatgny, restaurador autônomo
formado no IRPA, Myriam Serck-Dewaide, Monique Péquignot
e Agnes Grafin Ballestrem.
O I Congresso Internacional do Ceib em Mariana (1998),
contou com a participação do professor Ignace Vandevivere (1938-
-2004) da Universidade de Louvain-La-Neuve e diretor do Museu
de Louvain-La-Neuve.
O III congresso do Ceib em São João Del Rei (2003) teve a
participação de Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier
de escultura policromada e em seguida diretora do IRPA. Ela também
publicou no Boletim do Ceib Breve história da evolução dos
tratamentos das esculturas.
O IV congresso do Ceib em São João Del Rei (2005) contou
com a participação de Michel Lefftz, atual professor da Fundep
(Facultés Universitaires Notre-Dame de la Paix), de Namur. Sua
conferência foi publicada na revista do Ceib, Imagem Brasileira,
com o título “Análises morfológicas dos drapeados na escultura
portuguesa e brasileira. Método e vocabulário”.
Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier de esculturas policromadas
do IRPA (1973-1999); Responsável pelo Departamento de
Conservação do IRPA (1999-2002); Diretora do IRPA (2003-2011);
co-autora de Les techniques utilisées dans l’art baroque religieux des
XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal en Espagne et en Belgique, dans
Policromia. A esculptura policromada religiosa dos séculos XVII e
XVIII. Actas do Congresso Internacional Policromia em 2002, Lisboa,
IPCR, 2004, p. 119-157, e autora de ‘Les techniques utilisées
dans l’art baroque religieux des XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal
en Espagne et en Belgique’, Policromia. A esculptura policromada
religiosa dos séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Internacional
Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 119-157, e ‘Breve história
da evolução dos tratamentos das esculturas’, Boletim do Ceib, Belo
Horizonte, vol. 9, n. 31, juillet 2005.
Erika Benati Rabelo, Master em Conservação Preventiva (Paris I-
-Sorbonne), Restauradora do IRPA em Bruxelas.

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